"Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade."

Paulo Freire.

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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Papel da Brinquedoteca na Aderência ao Tratamento Oncológico

Pensar uma brinquedoteca dentro de um hospital que atende crianças e adolescentes com câncer está diretamente relacionado à preocupação em aumentar as suas chances de sobrevida e cura com qualidade de vida.

Para que se possa compreender o papel que uma brinquedoteca pode desempenhar na vida da criança que adoece e de seus familiares, é importante conhecer um pouco do impacto do diagnóstico não só nas suas rotinas, como em suas relações interpessoais e nos papéis desempenhados dentro da família. O diagnóstico de um câncer poderá levar não só a criança doente, como também aqueles que lhe são mais próximos a buscar formas de lidar com uma realidade que, em geral, é vivida com muita ansiedade e apreensão. O tratamento oncológico é longo e implica situações de desconforto físico, chegando, em muitos casos, a ser extremamente dolorosas, além de dificultar a continuidade de atividades importantes e agradáveis das quais antes a criança ou adolescente vinha participando.

Além disso, questões intimamente ligadas às expectativas relativas à vida da criança ou adolescente que adoece começam a ser revistas por todos os que, direta ou indiretamente, se encontram envolvidos nessa situação. Perina (Carvalho, 1994, p. 80), ressalta o lugar da doença em nossa cultura, comentando sobre a posição da família diante do fato: “(ela...) sabe da gravidade da doença e fala do seu medo, culpa e dor de não poder mais viver naturalmente sua vida, uma vez que a doença, no contexto sociocultural em que vivemos, é considerada não como parte integrante da vida, mas como um estorvo. Algo que não deveria nunca nos acontecer, imortais que somos em nossa fantasia”.

Deve-se ter em mente, portanto, que a inserção da criança num processo de tratamento numa instituição hospitalar não fora, de forma geral, sequer imaginada anteriormente. A começar pelo diagnóstico e conseqüente esclarecimento sobre suas implicações em aspectos tais como riscos e características do próprio tratamento, passando pela adaptação à nova realidade que se impõe, tudo parece exigir inúmeras mudanças de rotinas e até de papéis dentro da família. Sendo assim, todos os envolvidos terão, de uma forma mais ou menos repentina, que rever o que esperavam e encontrar formas de lidar com uma nova e dolorosa realidade que se impõe.

Com isso, algumas questões fundamentais devem ser consideradas pela equipe que recebe esse paciente e sua família. Uma das questões de maior importância é justamente aquela relacionada à aderência ao tratamento e a pergunta que se impõe é a seguinte: como garantir que o paciente e sua família, em particular o acompanhante que se responsabiliza junto com ele pelo tratamento, denominado “cuidador”, sigam corretamente as orientações médicas e da equipe multidisciplinar, tomem corretamente as medicações determinadas e compareçam ao hospital sempre que o tratamento o exigir? Em outras palavras, como garantir a aderência a um tratamento tão longo e exigente?

A efetiva aderência ao tratamento é fruto de um conjunto de práticas que incluem o cuidado com a informação sobre a doença, seus riscos e sobre o tratamento e suas implicações, através de orientações cuidadosas, a preocupação com as dificuldades de acesso ao hospital onde se realiza o tratamento com a freqüência necessária (transporte, acomodações para a família quando o paciente é oriundo de outra cidade) e a possibilidade de obtenção das medicações prescritas, muitas delas de custo elevado, que as tornaria inacessíveis a pacientes de baixo poder aquisitivo. Também os longos períodos de permanência no hospital, à espera de consultas, medicações, procedimentos e exames, além daqueles em que uma internação é absolutamente necessária, são desestimulantes para pacientes e acompanhantes.

Assim sendo, um projeto de brinquedoteca deve pretender, como um de seus principais objetivos, contribuir, através da terapia do lúdico, para a adesão ao tratamento oncológico, aumentando as chances de sobrevida de nossos pacientes, estimulando seu desenvolvimento global e a recuperação de sua auto-estima e confiança e tornando menos penosos os períodos de permanência no hospital, tanto para pacientes como para acompanhantes. Além disso, a brinquedoteca, por ser um espaço que facilita a interação, pode auxiliar no processo de informação não somente sobre a doença e o tratamento, mas também sobre as características e o funcionamento do próprio hospital.

Uma brinquedoteca deve ser planejada para oferecer uma variedade de estímulos para crianças, adolescentes e também para os adultos, pois o espaço deve ser pensado também para o cuidador. Seu acervo e as atividades desenvolvidas por sua equipe devem estender-se por todas as áreas do hospital freqüentadas pelos pacientes, pois, apesar de ser um local de excelência para a realização de atividades dirigidas para as crianças, adolescentes e seus acompanhantes, sob orientação psicológica, psicopedagógica e de outros profissionais especializados que compõem a equipe do hospital, deve procurar alcançar também os pacientes que estejam impossibilitados, por estarem internados ou em quimioterapia, de permanecerem nela.

Winnicott se refere a “... a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde...” (1975, pg 63). Assim sendo, parece imprescindível que, no caso de crianças com doenças crônicas que dificultam o acesso às brincadeiras, à escola e ao grupo, um espaço especialmente dirigido a essa atividade tão essencial para o resgate e a manutenção da saúde esteja para elas reservado.

Para verificar, entretanto, o papel de uma brinquedoteca na aderência ao tratamento, bem como facilitadora possível no enfrentamento da doença e dos procedimentos inerentes a ele, foi realizada em 2002, pela equipe que compunha a Brinquedoteca Terapêutica Senninha, localizada no Instituto de Oncologia Pediátrica GRAACC/Unifesp, uma pesquisa envolvendo pacientes, acompanhantes e profissionais dessa instituição (Relatório de Avaliação de Resultados, 2002). Os resultados dessa pesquisa, não publicados, revelam como um espaço destinado ao brincar pode auxiliar na vivência do adoecimento e do tratamento, tanto do ponto de vista do paciente e do cuidador, como do ponto de vista do profissional da saúde.

Dos 60 pacientes entrevistados, 75% demonstram conhecimento dos reais motivos pelos quais vêm ao hospital. Esse dado deve ser considerado positivo, partindo do princípio de que o conhecimento que o paciente tem a respeito de sua doença e do tratamento correspondente contribui positivamente para sua evolução. É interessante, entretanto, relacionar esse dado com a afirmação de 68% dos 60 acompanhantes entrevistados relatarem nunca ter tido dificuldades para trazer os pacientes ao hospital. A relação de motivos para que tal coisa aconteça é encabeçada pelo conhecimento, por parte do paciente, da importância do tratamento, seguida de perto por atrativos da Brinquedoteca. No caso dos acompanhantes que relataram dificuldades em trazer os pacientes ao hospital (32%), as formas de persuasão mais utilizadas envolvem a busca de conscientização do paciente da necessidade do tratamento e os atrativos da Brinquedoteca, sendo que num desses casos há a associação desses dois argumentos. Assim sendo, observa-se que a existência de uma brinquedoteca funciona concretamente como elemento de persuasão, facilitando a vinda do paciente ao hospital.

De modo geral, os entrevistados acreditam que a Brinquedoteca contribui de alguma forma para a evolução positiva do tratamento dos pacientes do IOP–GRAACC/Unifesp. Os motivos pelos quais essa relação acontece vão além do descrito acima, relacionando-se essencialmente ao fato de que a possibilidade de brincar devolve um caráter de “normalidade” à vida dos pacientes, ao alívio das tensões e do tédio da espera e à distração proporcionada pelo brinquedo e pelas possibilidades de interação social.

Nesse contexto, uma brinquedoteca aparece como um facilitador para o enfrentamento das dificuldades inerentes à doença e ao tratamento, que incluem, além do sofrimento físico, sentimentos de angústia, solidão, isolamento e tédio.

Ainda que alguns mencionem as palavras esquecimento e distração, podemos considerar que talvez esses não sejam os termos mais adequados para definir o que oportunidades de brincar e conversar livremente proporcionam. Talvez o que de fato aconteça seja uma mudança na perspectiva da própria relação com a doença, que deixa de ser o centro da vida dessas pessoas para ser apenas uma parcela, ainda que muito significativa, dessa vida. Isso pode acontecer exatamente pela possibilidade de contato com outras áreas de interesse de pacientes e acompanhantes, ligadas ao lúdico, à aprendizagem e à socialização.

Além disso, o tratamento deixa de ser, necessariamente, considerado algo que afasta a criança de seu cotidiano através do trabalho da Brinquedoteca, considerada como um espaço de resgate das vivências inerentes à infância, particularmente o brincar.

Não basta, entretanto, que o espaço da brinquedoteca seja reduzido apenas a uma sala de espera sofisticada e repleta de brinquedos interessantes e bem organizados. Esse cuidado é a base para um trabalho mais amplo, envolvendo a equipe que a compõe, que deve estar atenta para auxiliar e orientar o paciente na procura pelo brincar, pelo aprender e pelo crescimento pessoal, estimulando-o a procurar seus pares, sua escola e sua profissionalização fora do hospital.

Nesse ponto, é de fundamental importância que a equipe de uma brinquedoteca integre de maneira efetiva a equipe multidisciplinar do hospital. Isso se justifica pelo fato de que é na brinquedoteca que a criança “acontece”, ou seja, é nela que podemos observar como a criança brinca e como interage de maneira espontânea e quais são seus interesses. É muitas vezes nesse espaço que se identificam alterações de comportamento cujo conhecimento, obtido através da observação por profissionais especializados em desenvolvimento humano e que conhecem os pacientes através do contato cotidiano, pode ser de grande importância para a equipe. Por esse motivo, esse conhecimento deve ser compartilhado sempre que houver oportunidade, inclusive em reuniões formais com outros membros da equipe multidisciplinar para discussão de casos. Assim sendo, uma brinquedoteca hospitalar não deve olhar apenas para si mesma, para sua organização e higiene, caso pretenda ser considerada terapêutica. Sua atuação deve ir além, assumindo o seu papel dentro da equipe, pois somente assim contribuirá para a construção da tão importante visão global do paciente, como parte integrante do seu tratamento e com um conhecimento específico a ser compartilhado.

REFERÊNCIAS

1. Brun D. A criança dada por morta: riscos psíquicos da cura. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1996.
2. Carvalho MMML. Introdução à psiconcologia. Campinas: Editorial Psy; 1994.
3. Mittempergher RCR. Um estudo sobre o processo de aprendizagem de crianças tratadas de leucemia linfóide aguda. [Dissertação de mestrado em ciências aplicadas à pediatria]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina; 2001.
4. Raimbaul G. A criança e a morte: crianças doentes falam da morte: problemas da clínica do luto. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1979.
5. Valle ERM. Câncer Infantil: Compreender e agir. Campinas - SP: Editorial Psy; 1997.
6. Winnicott DW. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda; 1975.

http://www.praticahospitalar.com.br/pratica%2042/pgs/materia%2005-42.html

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